domingo, 16 de outubro de 2011

A DOUTRINA DA VOCAÇÃO

“Esta vocação eficaz é só da livre e especial graça de Deus e não provem de qualquer coisa prevista no homem; na vocação o homem é inteiramente passivo, até que, vivificado e renovado pelo Espírito Santo, fica habilitado a corresponder a ela e a receber a graça nela oferecida e comunicada.”[1]

Introdução: A vocação na vida cristã tende a ser dúplice, somos vocacionados, ou chamados eficazmente para a salvação por Cristo Jesus mediante sua graça. A mesma graça que se verificou salvatícia, aplica-se de forma específica a indivíduos que sendo membros do corpo de Cristo recebem uma vocação especial para participarem efetivamente da edificação do corpo de Cristo no uso de seus dons e ministérios.

O Deus que chama eficazmente para si aqueles a quem ele quer, também, eficazmente os capacita por sua graça, afim de que, uma vez iluminados pelo Espírito Santo e pelo mesmo Espírito dotados com dons para ministérios cumpram a vocação que receberam (conf. 1 Co 12.4-12; 28; comp. Ef 4.11; Rm 12.4-8). Esses indivíduos assim equipados, uma vez confirmados pela igreja participam da edificação do corpo de Cristo (At 12.1-3, comp. 1Tm 5.22). Grande é, porém, a responsabilidade daqueles que laboram na seara do Senhor, pois, trabalham em campo alheio e, o dono da seara e rígido e inflexível para acertar as contas com seus obreiros comissionados. Nos sinóticos[2] lemos sobre a parábola dos talentos ou, a sua semelhante, a parábola das minas. Aquele senhor, que representa o próprio Deus, foi generoso em distribuir seus talentos aos seus servos, “a cada segundo a sua capacidade”. O senhor da seara, no tempo determinado pediu contas aos seus comissionados para saber o que haviam feito cada um com seus talentos. Rigorosamente verificou o empenho de cada um. Aquele servo que recebera cinco granjeou mais cinco, foi elogiado e recompensado pelo senhor, de igual modo o que recebera dois, multiplicou por dois os talentos recebidos; foi também elogiado e recompensado, mas, o que recebera um talento, esse escondeu o que recebera, não produzindo qualquer lucro. Muito embora o homem tenha devolvido o que recebera, o senhor o repreendeu severamente e o condenou às trevas exteriores (conf., Mt 25.14-30; Lc 19.11-27). Entendemos claramente ser justo que o Senhor da seara cobre de seus obreiros empenho e labor para multiplicar aquilo que lhes foi colocado em mãos. Ali na parábola, contudo, trata-se de “talentos” ou “minas”, bens temporais ou dinheiro, mas, quem é chamado para um ministério no corpo de Cristo, trata com almas e uma alma “vale mais que o mundo inteiro” (Mt 8.36; 16.26;Lc 9.25).

Temo que muitos que são denominados ministros hoje na igreja ainda não atinaram com a responsabilidade ministerial. Há muitos que gostam de exercer a primazia; de portar o honorável título de pastor, bispo, missionário ou até mesmo, “apóstolo”, mas, deviam parar e refletir um pouco sobre o que é vocação ministerial e, quais as responsabilidades de um ministro, bem como, refletir sobre as implicações eternas da obra que estão realizando e, que lhes será pedido contas da incumbência que receberam (Hb 4.13; 13.7, comp. 1Pd 4.5).

Devemos apreciar biblicamente a teologia da vocação, há um texto que é considerado áureo para os teólogos da reforma, relativamente à doutrina da vocação; refiro-me ao texto do capítulo seis do profeta Isaías. Passaremos adiante verificando in loco os aspectos que envolvem a vocação ministerial baseados nesse texto. Observem-se no texto abaixo transcrito as palavras grifadas, pois abordaremos com destaque essas expressões para falar sobre a vocação.

1 No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as abas de suas vestes enchiam o templo. 2 Serafins estavam por cima dele; cada um tinha seis asas: com duas cobria o rosto, com duas cobria os seus pés e com duas voava. 3 E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória. 4 As bases do limiar se moveram à voz do que clamava, e a casa se encheu de fumaça. 5 Então, disse eu: ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos! 6 Então, um dos serafins voou para mim, trazendo na mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; 7 com a brasa tocou a minha boca e disse: Eis que ela tocou os teus lábios; a tua iniqüidade foi tirada, e perdoado, o teu pecado. 8Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim. 9Então, disse ele: Vai e dize a este povo: Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas não percebais. 10Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. 11ntão, disse eu: até quando, Senhor? Ele respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem moradores, e a terra seja de todo assolada, 12e o SENHOR afaste dela os homens, e no meio da terra seja grande o desamparo. 13 Mas, se ainda ficar a décima parte dela, tornará a ser destruída. Como terebinto e como carvalho, dos quais, depois de derribados, ainda fica o toco, assim a santa semente é o seu toco.

1) A Crise: “No ano da morte”Há sempre um momento que marca a vocação. Todo chamado tem um ponto de partida, um momento decisivo, uma hora H. Na vida do profeta Isaías, foi num momento de dor, pois, sendo, aparentado de Uzias, Rei de Judá, sob cuja benesse vivia e, por quem nutria profundo amor, de repente, viu-se, diante da perda de seu benfeitor e amigo. Ele, naturalmente, naquela hora de dor, de “crise”, foi ao templo para chorar e, lamentar a sua perda. Estando ali no santuário, algo inaudito aconteceria e, que mudaria radicalmente a sua existência. Obviamente, o jovem[3] Isaías não sabia que aquele seria um dia decisivo em sua vida. Tal seria a sua experiência, que aquele dia ficaria na sua história e na história da Revelação como um dia impar. Assim como Isaías, todo vocacionado pode precisar o momento especial e marcante quanto, inequivocamente sentiu o chamado divino. Como observamos nas Escrituras, há tantos exemplos testemunhais; Jeremias, Ezequiel, Salomão, Paulo, etc. Geralmente, quem recebeu um chamado pode falar com nítida clareza e, descrever pormenorizadamente o momento de sua vocação. Vocação inclui crise. Caso não seja possível memorar tal experiência, é simples: A VOCAÇÃO AINDA NÃO OCORREU.

2) A visão: “vi o Senhor” A visão de Isaías não foi algo que aconteceu no âmbito natural, mas, sobrenatural. Partindo do ponto de vista de que aquele foi um momento de sublimação, entendemos que tudo se deu numa esfera mais elevada. Se acompanharmos o relato daqueles que foram chamados por Deus no passado, observaremos, principalmente nos profetas, que introduzem seus escritos, geralmente com o vocábulo “visão” (conf. Ez 1.1; Amós 1.1; Obadias 1.1; Miquéias, etc.). Ter uma visão de Deus, não significa necessariamente, que todo vocacionado tenha a necessidade de ter a mesma experiência de Isaías, no sentido literal da palavra visão. Uma visão vocacional acontece, antes de tudo no íntimo da pessoa chamada. Quando alguém é chamado à voz do Senhor lhe ecoa na alma e, lá no íntimo de seu ser sabe nitidamente, que não será mais o mesmo e, sabe também que não poderá retroceder diante do chamado. A visão tem um caráter tão nítido para a vocação, que Paulo, por três vezes relata a sua visão vocacional. Isso fazia parte do argumento de Paulo e, estava relacionado ao seu credenciamento divino (conf. At 9.3; 22.6; 26.13). A visão é imprescindível. Se não houve visão, NÃO HOUVE VOCAÇÃO.

3) Características distintivas da visão vocacional: Essa visão tem alguns valores nuances que estão enumerados no texto em apreço. Do caráter da visão depende também o caráter da postura de um ministro de Cristo. Vejamos como o próprio Isaías delineia a visão vocacional.

a. A visão distingue entre o vocador e vocacionado: “um alto e sublime trono” Essas expressões distinguem factualmente, que Aquele perante o qual se avista o profeta não é seu igual, não é de seu nível horizontal e humano. Ele está assentado sobre um trono, portanto, ‘é Soberano’, é Senhor. As expressões sinonímicas “alto” e “sublime” demonstram que Ele está muito acima das circunstâncias mundanas e, totalmente separado do contingente humano. Mas, quando se mostra ao profeta e lhe revela sua realeza pessoal; tange o finito, o temporal e mundano para demonstrar que se importa; que não esteja alheio; de que há algo a ser feito. Observe nas Escrituras, que jamais Deus se revelou a alguém sem que lhe incumbisse de alguma tarefa em seu Reino. Desde o início foi assim; aconteceu com Noé, com Abraão, com Moisés, etc. E, com toda a constelação de vocacionados ao longo da história da Revelação. Todo vocacionado deve ter a nítida consciência da sublimidade daquele que o chamou, sob pena de perder de vista a importância do chamado, pois, a importância do chamado, não se prende, primeiro à tarefa, mas, ao caráter daquele que o chamou e incumbiu.

b. Quem chama é o Santíssimo: “Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos” Todo vocacionado deve ter uma nítida visão da santidade de Deus. A repetição enfática no texto hebreu indica que “santíssimo” é o Deus que chama. Esse Deus santíssimo quer ser servido em santidade também. O caráter de Ente Santo de Deus afirma Sua pureza e retidão. Ele é incontaminado do mal existente no universo, muito embora, Ele mesmo possa usar o mal para seu propósito, de acordo com sua sabedoria. Ainda o caráter de Ente Santo de Deus indica que Ele é separado de toda a criação no sentido de ser incriado e perfeito em seu Ser, essência e obras. Esse Deus partilha seus planos com homens; homens esses, que uma que vez tenham visto Sua santidade devem buscar uma vida santa, também separada, não do mundo, mas, no mundo. Estar no mundo é uma condição física necessária para sermos instrumento de Deus. Ele desde os tempos mais remotos sempre exigiu vida santa (Lv 11.44,45).

c. A vocação estabelece crise: “ai de mim! Estou perdido!” – A santidade em Deus é inerente à sua própria essência, mas, no homem é uma busca constante e incansável, pois, lidamos com as misérias de nossa própria natureza corrompida. Não há em nós, naturalmente falando, qualquer propensão para o bem. É como diz Paulo em Romanos capítulo três, “não há justo, nem um se quer...” “...não há quem entenda...” “não há quem busque a Deus...”, não há quem faça o bem...” etc. A busca por uma vida agradável a Deus é um desafio constante. Essa busca pela santidade começa a partir do momento em que entendemos a nossa natureza; quando somos confrontados pela Santidade. Isaías enxergou seu estado miserável de pecado ao contemplar essa Santidade, então, disse: “estou perdido”. De fato estaríamos perdidos, não fora a maravilhosa graça de Deus. Mas, Deus não se revelou a ninguém no passado que Ele quisesse fulminar, mas, sim, que Ele quisesse usar. O temor de Isaías é compreensível, à luz da tradição de Êxodo 33.20, onde o próprio Deus adverte a Moisés.

d. O vocacionado é pecador: “sou homem de lábios impuros” – Todo o vocacionado deve entender a sua natureza toda pecaminosa. Tal entendimento é salutar, no sentido de que jamais se torne arrogante ou, considere-se superior ou, melhor, devido ao chamado divino. Paulo mesmo se intitulou “o principal dos pecadores” (1Tm 1.15,16).

e. O vocacionado é enviado a pecadores: “habito no meio de um povo de impuros lábios” – Também é preciso entender a natureza daqueles aos quais somos enviados. Eles não são diferentes de nós, nem mais, nobres, nem mais pecadores, mas, simplesmente, são eles pecadores tão carentes de Deus como qualquer outro vocacionado (Rm 3.23; comp. 5.12).

f. A visão é soberana: “meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos!” – O profeta tinha acabado de assistir a morte de um rei humano, alguém que ela amava muito, mas, agora está perante o Rei do universo; alguém que deve amar, alguém que deve reverenciar e temer. Esse Rei é imortal, cheio de amor e santidade. Ele servira a um rei temporal e passageiro, agora, serviria pare sempre o Rei do reis. Entenderá que no servi-lo devê-lo-á plena submissão; incondicional obediência. O vocacionado não está a serviço de si mesmo, nem antes ao serviço dos homens, mas, serve a Deus, aquele que o chamou.

g. O Deus que chama purifica e santifica: “com a brasa tocou a minha boca tua...” “... iniquidade foi tirada” “... perdoado, o teu pecado...” – O problema crucial do servo humano é sua pecaminosidade. O problema do pecado é algo que só Deus pode resolver. A solução vem do altar, nesse caso o mediador foi um “serafim”, o elemento purificador foi uma brasa tirada de sobre o altar. Na presente dispensação, só o sangue de Jesus é suficiente para resolver o problema do pecado, por isso mesmo, todo vocacionado, tem antes de tudo que ser alguém salvo pela graça Deus, um remido em Cristo Jesus (Ef 1.7,8; comp. 1Jo 1.7).

h. A vocação é nítida e inequívoca: “ouvi a voz do Senhor...” “a quem enviarei e, quem há de ir por nós?” – A vocação parte de Deus, do Deus trino. Toda a trindade está empenhada na vocação. Deus chama, segundo a Sua presciência, Jesus redime com Seu sangue purificador, o Espírito Santo santifica com seu poder santificador. Assim, o vocacionado estará potencialmente preparado para atender à vocação soberana do Senhor (conf. 1Pd 1.2). O profeta, jamais, por um momento que seja, nutrirá dúvidas quanto ao seu chamado.

i. A resposta deve ser incontinente: “eis-me aqui, envia-me a mim.” – A resposta ao chamado deve ser incontinente, assim como são incontinentes os serafins ante o trono da graça. Quem é chamado não pode dizer não para Deus. Sua vocação é soberana, irresistível e intransferível. Exemplos como os de Jonas, e Paulo sobejam em demonstrar que Deus jamais aceitará um não como resposta. Todo vocacionado sabe disso por experiência própria. Tem que se dispor para Deus sem nenhuma reserva; sua vida já não lhe pertence mais, sua vontade cai subserviente à vontade soberana de Deus, por isso mesmo só pode dizer: “eis-me aqui, envia-me a mim”.

j. A vocação inclui missão: vai e dize a este povo – Não existe vocação sem missão. O Deus que chama também envia e, ao enviar, como vimos, equipa. Todo vocacionado sabe para o que foi chamado; conhece o caráter particular da sua vocação. Sabe o que tem que fazer e, deve estar pronto para desincumbir-se da missão. A missão de Isaías era árdua, ele não obteria sucesso diante daqueles a quem estava sendo enviado. Quando Deus nos chama não nos promete nenhuma facilidade, porém Ele promete estar conosco e se compromete em nos preparar convenientemente para que nos desincumbamos da missão que a vocação envolve (Mt 28.19-20; At 1.8). Os versos restantes demonstram que sucesso não é uma promessa inclusa na missão. Nenhum profeta jamais é chamado para ser “sucesso”, mas, para obedecer, incondicionalmente à vocação divina.

Conclusão: Observamos que o texto em apreço ainda possui outra teologia (a teologia do culto) paralela à teologia da vocação. Destacamos, contudo, nesse primeiro momento, a teologia da vocação devido ao caráter de urgência que nos imprime o Espírito. Atendendo ao clamor dessa urgência, visamos apreender primeiro a lição vocacional, contudo, num outro momento, pretendemos analisar também esse segundo aspecto do texto. Então, nessa abordagem primeira focamos como teologia principal do texto a vocacional, por considerar que a segunda teologia requer do vocacionado uma atitude que é só possível a alguém que foi vocacionado por Deus, ainda que tal vocação seja primária e não especificamente ministerial; se é que Deus jamais chamou a alguém sem lhe dar uma incumbência ainda que mínima em seu Reino.

Pr. Prof. Rafael Ribeiro ThM.

[1] Confissão de Fé de Westminster Capítulo X – Da vocação eficaz. [2] Mateus, Marcos e Lucas (evangelhos sinóticos). São assim denominados pela semelhança textual. [3] Segundo alguns comentaristas, tinha Isaías cerca de 20 anos por ocasião de sua vocação.

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